Fonte:
DICIONÁRIO de HISTÓRIA da
ÁFRICA – SÉCULOS VII A XVI [Nei Lopes &
José Rivair Macedo]
Verbete:
MULHERES.
Uma
história das mulheres nas antigas sociedades africanas, levando em conta a
diversidade de situações, cronologias, contextos, com a multiplicidade de
enfoques que o tema exige, ainda está para ser escrita. O pouco que até agora
foi dito, são geralmente relatos que expressam um foco narrativo eminentemente
masculino, produzidos por não africanos –
viajantes, geógrafos, missionários, etc. Nesse conjunto, observam–se
interpretações que, ao procurarem retratar as formas de inserção das mulheres
na História
africana
fizeram–no a partir de referenciais externos, eurocêntricos, colonialistas,
condicionados por parâmetros masculinos. Há que se reconhecer o valor
informativo de trabalhos pioneiros, como os de David Sweeterman (1988),
Henrich Loth (1988). Entretanto, nessas obras o enfoque se restringe
basicamente às biografias de personagens femininas exemplares ou em posição de
poder. Pouco ou nenhum espaço, até aqui, ganharam reflexões ou discussões sobre
os traços particulares das formas de organização das mulheres comuns, recaindo
em abordagens generalizantes ou essencializadas – como a ideia limitadora de
uma suposta “mulher africana” atemporal,
deslocada das realidades socioculturais específicas do tempo e lugar em que
viveram. Em sentido inverso, o excesso de teorização produziu igualmente
perspectivas de abordagem muito genéricas e engessadas. Nelas, as mulheres
aparecem conceitualmente aprisionadas, na condição de “força de trabalho” e de
reprodutoras dessa força, no modelo marxista do “modo
de
produção
doméstico”;
modelo esse gerado pela violência do rapto e da inserção feminina em sociedades
cujos valores se baseiam na caça e na guerra, atividades de que são
enfaticamente excluídas. Como ressaltado em Balandier e Maquet (1968,
p. 172), as interpretações que reduzem o papel da mulher, na África,
a um estado geral de alienação e exploração por parte dos homens contém, sim,
um fundo de verdade; mas trata–se de uma situação historicamente
recente, devida principalmente às consequências econômicas da colonização.
Matriarcado e matrilinearidade.
No
livro L’Unité culturelle de
l’Afrique
Noire
(1959),
Cheikh Anta Diop identificou o modelo matriarcal
como
traço
distintivo
geral
da
África
Negra,
opondo–o ao modelo patriarcal da Europa. Essa identificação é controversa; e a
própria ideia de um tipo de sociedade em que as mulheres sejam ou tenham sido
chefes ou dirigentes é atualmente rejeitada pela maior parte dos antropólogos
como hipotética e ultrapassada (SILVA, 1986, p. 730). O que
efetivamente existiram e existem são sociedades em que o caráter ou a condição
do sistema de parentesco e organização social é matrilinear. Esse sistema, em
que apenas a ascendência materna é levada em conta no que concerne à
transmissão do nome e dos privilégios e à condição de pertencimento a um clã,
ocorreu e ainda ocorre em diversas sociedades africanas.
Tal ocorria, por exemplo, entre tuaregues, soninqués, mandingas e
uolofes; e entre alguns grupos da Bacia do Congo.
Em algumas sociedades antigas, foram observadas potencializações da influência
feminina. Um dos casos mais conhecidos é o dos bijagós, povo da atual Guiné–Bissau,
entre os quais as mulheres desempenhavam e desempenham papéis de chefia e
posições de poder na constituição familiar e na organização social, inclusive
tendo a faculdade de escolher os maridos.
Senioridade.
Entre
os antigos iorubas de Oyó, por exemplo, a divisão
sexual ou mesmo a identidade de gênero sexual parece não terem sido princípios
estruturadores fundamentais. Nessa sociedade, as caracterizações “homem” e
“mulher” não se restringiam ao gênero sexual, e a própria expressão linguística
das diferenças entre masculino e feminino mostrava-se ambígua. Nela, segundo
algumas interpretações, não prevaleciam nem um dimorfismo sexual e nem relações
hierárquicas determinadas pela identificação anatômica dos sexos: as posições de
prestígio vinculavam–se à origem familiar e, sobretudo, à senioridade. Num
outro exemplo, vamos ver que, na tradição dos axântis da moderna República
de
Gana,
entre os vivos de uma família a pessoa mais importante é a mulher mais idosa.
Essa mulher, seja como mãe, avó, tia, etc., é vista como detentora da maior
capacidade para aconselhar e arbitrar conflitos. Mesmo um homem poderoso na
esfera civil ou militar não deve tomar grandes decisões sem consultar a mulher
mais idosa de sua família (HAFNER, 2000, p. 56). Nas antigas
tradições
orais
mandingas
relativas ao herói fundador Sundiata Keita, lê–se que este, quando convidado a
retornar do exílio em que estava e voltar ao Mandê, viu–se dividido entre a
obrigação com a coletividade e com sua mãe, Sogolon Kedju, que se encontrava
enferma, à beira da morte. Sundiata não seguiu os emissários do Mandê antes de
cumprir com suas obrigações nos momentos finais de sua genitora, assegurando–lhe
cuidado, atenção e um sepultamento digno (PALA; LY, 1982, p. 185). As
relações de tipo matrilinear não implicavam em superioridade sociopolítica para
as mulheres. Entretanto, conferiam a elas uma posição de prestígio, baseada na
ideia de solidariedade e respeito; e sobretudo no reconhecimento da experiência
da idade. Contudo, nas sociedades gradualmente influenciadas pelo islã ou pelo
cristianismo, a reconfiguração em moldes patriarcais fez com que as mulheres
perdessem parcialmente o prestígio de que desfrutavam (COQUERY–VIDROVICH, 1986,
p. 24). Nesse sentido, o relato da viagem de Ibn Battuta ao Antigo Mali
em 1352–1353 testemunha o choque cultural entre os preceitos islâmicos que
estavam sendo difundidos na área saariana e subsaariana e os costumes locais.
Quando passou pela cidade de Ualata, o sábio marroquino percebeu, como coisa
“curiosa e estranha, “que os homens não se ligam à descendência do pai, mas à
do tio materno, herdando os filhos da irmã e não seus próprios filhos”. Além do
mais, indignou–se por descobrir que os homens não tinham qualquer ciúme de suas
esposas, que agiam com grande liberdade em relação aos seus parceiros (CUOQ, 1985,
p. 295–296). O que Ibn Battuta considerou “anormal” e sintoma de relaxamento
dos costumes era percebido de outra forma fora das premissas patriarcais do
islã. Inclusive, porque, na época, a doutrina muçulmana estava ainda em fase de
implantação e atingia apenas parcialmente as sociedades africanas. Semelhante
estranhamento demonstraram escritores do mundo cristão no fim do século XVI
diante da vigência da matrilinearidade entre os uolofes, mandingas e fulas
da região da Senegâmbia (ALMADA, 1964, p. 9–10). Esses já
estavam parcialmente doutrinados pelo islamismo, mas ainda não totalmente
desvinculados de seus antigos costumes. Ao longo do tempo, a História
registrou algum protagonismo feminino, como nos casos das hauçás Amina,
Bazao–Turunku,
Kahina,
etc. Entretanto, é em épocas anteriores, como as do Egito faraônico
e do período de domínio romano, pela existência de mais fontes escritas, e
também posterior, certamente pelo número mais avultado de crônicas e relatos de
viajantes, que aparece mais o protagonismo feminino na História da
África.
Rainhas–mães.
O
prestígio e poder conferido às consortes dos governantes é, nas sociedades
africanas,
um traço que remonta à Antiguidade. Tal foi o caso
das kandaces da antiga Méroe que governaram junto
com os seus parceiros ou sozinhas, ocupando posição de grande destaque
político. No antigo Monomotapa, a rainha–mãe, considerada “mãe de todos os
reis”, tinha voz na corte e no conselho real (COQUERY–VIDROVITCH, 1986,
p. 36). Da mesma forma, na área congo, as rainhas–mães eram respeitadas e
reverenciadas, servindo de mediadoras ou atuando diretamente na esfera
política, embora nunca se tenha admitido que elas fossem chefes de Estado
(THORNTON, 2006, p. 437–460). No Antigo Mali, a
preeminência da primeira esposa do mansa, chamada kasa, de papel equivalente ao
de “rainha–mãe”, era tal que ela dividia com o marido a representação do poder
e governava pessoalmente a província de Djenê. Além dela, a favorita
do mansa, referida como baramuso, era a confidente, a quem ele não ocultava
nada, nem os segredos que pudessem comprometer sua vida. A influência dela era
disputada por todos os interessados em se aproximar, se aliar ou se opor ao
governante. Segundo parece, em épocas muito recuadas os povos nono eram
governados por mulheres, algo que ainda ocorria em 1470, quando foram
incorporados ao Império Songai por Soni Ali. Com a
islamização do Mali, este protagonismo feminino diminuiu, mas em certos
locais indícios sugerem a continuidade dos costumes ancestrais. Na região de Segu,
até o século XX mantinha-se o costume de obediência a dois reis que partilhavam
o poder: um “rei da guerra” (kelemasa) e um “rei da paz” (deelikemasa).
Enquanto o primeiro representava a força e a violência, o outro detinha a
influência da palavra e era chamado a intervir em situações de negociação e
conflito, representando o polo feminino do poder. Por isso, os homens que
desempenhavam essa função eram castrados, vestiam–se e ornamentavam-se
parcialmente como mulheres, cobrindo–se com turbante ou portando um véu sobre a
boca e a fronte (BAZIN, 1988, p. 375–441). Ver AMINA;
AXÂNTIS; BAZAO–TURUNKU; BIJAGÓS; CONGO; ELENI; IORUBÁS; JUDITE, Rainha; KAHINA MANDINGAS;
MATRIARCADO; MATRILINEARIDADE; OYÓ; KIBINDA ILUNGA; SONIN QUÉS; SUNDIATA KEITA;
TUAREGUES; UALATA; UOLOFES.
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